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Aspectos Jurídicos das Enchentes Históricas que atingiram o Vale do Taquari/RS

Aspectos Jurídicos das Enchentes Históricas que atingiram o Vale do Taquari/RS

Historicamente o homem optou por habitar e fixar residência no entorno de recursos hídricos. No Brasil, tal fenômeno se repetiu, com massiva ocupação às margens dos rios e a grande concentração das capitais dos Estados na costa do Oceano Atlântico, resultando em escassa ocupação do interior do país. Some-se a esta situação as ondas migratórias rurais-urbanas em busca de emprego, renda e melhores condições de vida, e o resultado é um processo de urbanização desigual e desordenado, muito em razão da ausência de planejamento, acarretando diversos problemas urbanos, sociais e ambientais.

A falta de condições financeiras e a ausência de imóveis disponíveis para moradia pela nova população urbana resultaram na ocupação de áreas cuja utilização é vedada, como as Áreas de Preservação Permanente de cursos d’água e encostas de morros[2] e Áreas de Risco[3].

No Estado do Rio Grande do Sul são constantes as inundações e alagamentos nas áreas que margeiam os rios, notadamente no nosso querido e pujante Vale do Taquari. Como sempre referido pelo Prof. Carlos André Bulhões Mendes, ex-Diretor do IPH[4] e atual Reitor da UFRGS, as enchentes nas planícies de inundação, áreas que recebem os excessos de água que extravasam do canal de drenagem atingindo residências e outras edificações, nada mais são do que um processo natural de “reintegração de posse” realizado pelo recurso hídrico.

O Estatuto da Cidade estabelece como diretriz geral da política urbana a ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar a exposição da população a riscos de desastres[5]. Além disso, o Estatuto estabelece que o Plano Diretor é obrigatório para aqueles Municípios incluídos no cadastro nacional de municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos, devendo os Planos possuírem em seu conteúdo mínimo uma série de previsões a respeito da temática, com destaque para o mapeamento contendo as áreas deslizamentos e enchentes, e o planejamento de ações de intervenção preventiva e realocação de população de áreas de risco de desastre[6].

A Lei do Parcelamento do Solo Urbano determina que não será permitido o parcelamento do solo em terrenos alagadiços e sujeitos a inundações, antes de tomadas providências para assegurar o escoamento das águas[7]. No mesmo sentido, a Lei do Desenvolvimento Urbano do RS, dispõe que fica vedado o parcelamento do solo para fins urbanos em terrenos sujeitos a inundações e nas áreas de preservação permanentes instituídas por lei[8]. Tal proibição foi reforçada no Novo Código Estadual de Meio Ambiente do RS, recentemente aprovado em 2020, que estabelece que “não será permitido o parcelamento do solo em terrenos sujeitos a inundações, antes de tomadas as providências para assegurar o escoamento das águas, providências essas que não poderão gerar ou ampliar impactos a outros terrenos, e também não poderão implicar investimentos públicos para implantação de infraestrutura ou respectiva manutenção, salvo regularizações de áreas ocupadas cuja desocupação seja ainda mais onerosa para o Poder Público”[9].

Inclusive, a Lei da Regularização Fundiária Urbana e Rural estabelece que o projeto de regularização conterá um estudo para situação de risco e um estudo técnico ambiental, se for o caso[10], bem como dispõe que para aprovação da regularização de núcleos urbanos informais em áreas de risco de inundações deverão ser realizados estudos técnicos a fim de examinar a possibilidade de eliminação, correção ou administração dos riscos, sendo condição indispensável para a sua aprovação a implantação das medidas indicadas[11]. Por fim, a Lei é clara ao determinar que a regularização de áreas ocupadas por população de baixa renda não poderá ocorrer em áreas que não comportem eliminação, correção ou administração, sendo que tais populações deverão ser realocadas pelos Municípios[12].

É indispensável referir que os Planos Diretores Municipais devem estar alinhados, de forma complementar, integrada e coerente com outras políticas públicas e planos, como os de ordenamento territorial (leis de zoneamento, parcelamento do solo e regularização fundiária), de saneamento básico, e, evidentemente, os Planos de Bacia e os de prevenção e defesa civil, entre outros.

O Plano de Bacia do Rio Taquari-Antas, elaborado em parceria pela SEMA, DRH, FEPAM e o Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Taquari-Antas, foi publicado em outubro de 2012[13], tendo sido executadas as Fases A – Diagnóstico e Prognóstico – e B – Cenários Futuros e Enquadramento. No entanto, a Fase C – Programas de Intervenções, ou seja, justo a fase da execução das medidas para a gestão adequada dos rios a curto, médio e longo prazo, não foi executada e está parada no Departamento de Recursos Hídricos do Estado desde 2013, há mais de 10 anos.

Especificamente no que diz respeito aos planos de prevenção e defesa civil, a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil destaca a relevância e obrigatoriedade da adoção de medidas necessárias à redução dos riscos de desastre, sendo que a incerteza quanto ao risco não poderá constituir impedimento para a adoção de tais medidas[14]. A Política também destaca como uma de suas diretrizes, assim como deveres dos entes Federal, Estaduais e Municipais, em articulação, a realização do monitoramento dos eventos meteorológicos, hidrológicos e geológicos das áreas de risco, produzindo alertas sobre a possibilidade de ocorrência de desastre. Neste sentido, é muito pertinente a manifestação de Adair Weiss, Diretor Executivo do Grupo A Hora, em sua coluna publicada na edição de 09 de setembro de 2023 do jornal[15], quanto à urgente necessidade de investimentos tecnológicos que permitam “antecipar informações vitais que possibilitem evacuações em tempo hábil”, com a criação de “mecanismos de informação confiáveis e que (de fato) funcionem”, haja vista a insuficiência, ineficácia e o desencontro das informações e dos alertas tardiamente emitidos no recente episódio.

Sem querer esgotar o tema ou realizar uma análise aprofundada acerca de cada um das leis e planos citados, assim como de seus instrumentos, é indispensável reforçar que o gerenciamento das áreas de risco deve considerar a prevenção e o controle, sendo que este último deve buscar a eliminação ou a redução dos riscos identificados. É necessário que se estabeleça que, além de se buscar a adoção de medidas mitigatórias e a eliminação ou redução do risco através da realocação das populações que vivem em áreas de risco, é essencial prevenir novas ocupações.

É papel do Poder Público e da sociedade civil dos Municípios do Vale do Taquari, para além de buscar a reconstrução das cidades, o conforto e o apoio às famílias atingidas, e a retomada econômica das atividades do comércio e da indústria, aprender, espera-se, definitivamente, com a enchente histórica, adotando medidas concretas e investindo pesadamente em prevenção, informação e realocação, a fim de evitar que novas enchentes voltem a provocar prejuízos patrimoniais e, especialmente, perda de vidas humanas.

Por Diogo Petter Nesello | OAB/RS 89.824

 

[1] Dados oficiais de 25/09/2023.

[2] Art. 4º, I e V, da Lei n.º 12.651/2010 – Novo Código Florestal.

[3] Art. 2º, VI, h, Lei n.º 12.608/2012 – Estatuto das Cidades.

[4] Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

[5] Art. 2º, VI, “h”, Lei n.º 10.257/2001.

[6] Art. 42-A, Lei n.º 10.257/2001.

[7] Art. 3º, I, Lei n.º 6.766/79.

[8] Art. 17, I, V e VII, Lei Estadual n.º 10.116/94.

[9] Art. 179, Lei Estadual n.º 15.434/2020.

[10] Art. 35, VII e VIII, Lei n.º 13.465/2017.

[11] Art. 39, caput e § 1º, Lei n.º 13.465/2017.

[12] Art. 39, § 2º, Lei n.º 13.465/2017.

[13] https://rsgovbr-my.sharepoint.com/personal/raiza-schuster_sema_rs_gov_br/_layouts/15/onedrive.aspx?id=%2Fpersonal%2Fraiza%2Dschuster%5Fsema%5Frs%5Fgov%5Fbr%2FDocuments%2FBiblioteca%20DIPLA%2FPBHs%2FG040%20%2D%20Bacia%20Hidrogr%C3%A1fica%20do%20Rio%20Taquari%2DAntas%2FRevista%2Epdf&parent=%2Fpersonal%2Fraiza%2Dschuster%5Fsema%5Frs%5Fgov%5Fbr%2FDocuments%2FBiblioteca%20DIPLA%2FPBHs%2FG040%20%2D%20Bacia%20Hidrogr%C3%A1fica%20do%20Rio%20Taquari%2DAntas&ga=1

[14] Art. 2º, caput e § 2º, Lei 12.608/2012.

[15] https://grupoahora.net.br/conteudos/2023/09/09/o-que-faltou-para-evitar-a-tragedia/

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